O início do ano traz um sentido de expectativas renovadas, de planos para os dias que virão e a sensação de novidade que os novos dias trazem. Entretanto, baseados nesses sentimentos que transnudem nossos pensamentos, uma única certeza se clarifica por meio de nossas escolhas diárias.
No final de 2021 conversei com um grande amigo de minha infância. Nessas oportunidades aproveitamos cada momento para debatermos ideias, e ele me apresentou à estória grega de Sísifo, filho do rei Éolo, considerado o mais astuto de todos os mortais.
Sísifo governou por diversos anos a cidade que ajudara a fundar, Corinto. Sua história é conhecia por se tornar um dos maiores ofensores dos deuses gregos. Em razão de suas condutas, recebeu como castigo na terra dos mortos a condição de empurrar uma pedra até o lugar mais alto da montanha, de onde ela sempre rolava de volta, fazendo-o repetir incansavelmente esse árduo trabalho pela eternidade.
Ao analisar o mito, acredito que este nos traz o ideal de que os mortais não têm a liberdade dos deuses, o que os leva a se concentrarem nos afazeres da vida cotidiana, vivendo-a em sua plenitude, limitando-se a se tornarem criativos na repetição e na monotonia. Entretanto, também é possível considerar que a rebeldia de Sísifo garantiu sua liberdade de escolha, o que traduz na genialidade e coragem para enfrentar os temidos deuses.
Essa dualidade de sentimentos que a estória de Sísifo apresenta é o cerne desse texto. Inicialmente, a punição de um trabalho inútil e sem esperança. Por outro lado, a coragem de se fazer escolhas que eventualmente desagradem os deuses, mas satisfaçam sua intenção natural de agradar a si mesmo.
Albert Camus aprofundou o mito de Sísifo em seu livro “The Myth of Sisyphus and Other Essays” (1955). O autor é o expoente máximo do absurdo em relação à existência humana. Em síntese, o absurdo é a tensão existente no confronto do homem com o mundo. Nesse sentido, ele menciona que Sísifo é o herói do absurdo. Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo ser se empenha em não terminar coisa alguma. E conclui citando: “É o preço que se paga pelas paixões dessa terra”.
Ponderando que o homem vive sua experiência nesse mundo em busca de uma essência existencial, do seu sentido mais profundo de pertencimento à própria natureza, mas encontra um mundo desconexo, ininteligível, gerenciado por pressões maiores que a própria existência humana, que são regidas por coletivos supra, a exemplo de religiões e ideologias políticas, esclarece, em sua obra, que o sentimento mais correto seria a revolta.
Entretanto, a própria estória de Sísifo é dualista a respeito de qual seria o sentimento mais correto, a revolta ou a aceitação de que a vida é a regra do cotidiano e da monotonia. Certo é que a vida sem um sentido acaba limitando a escala de valores, daquilo que traz prazer em empurrar a pedra até o alto da montanha, mesmo sabendo que irá rolar abaixo, vez que aquele que o faz, se tem consciência, saberá que terá força e energia para repetir esse ato por vezes e vezes, durante toda a eternidade.
Nesse caso, o modo de execução dessa árdua tarefa é o significado da capacidade enfrentar os desafios rotineiros, o que impede a monotonia desesperançar a eternidade dos dias que virão. Aí que reside a genialidade humana em fazer as atividades rotineiras de formas diversas, em especial, de um modo que garanta uma satisfação pessoal, tanto na execução quanto no resultado.
Albert Camus traduz esse sentimento de que “o que conta não é a melhor vida, mas a maioria dos que a vivem”. A plena aceitação de uma condição pode trazer um sentimento libertador de que a vida será assim, durante a eternidade de sua existência, mesmo que se reconheça a falta de sentido, a continuidade de execução da tarefa diária de viver é a consciência necessária com o dever de “fazer o que tem que ser feito, posto que tudo está como têm de estar”.