Colega farmacêutico, a cena se repete diariamente no balcão: uma receita médica que mais parece um enigma indecifrável. A pressão do paciente, a urgência do tratamento e a responsabilidade profissional criam um dilema que apenas quem vive a rotina da farmácia conhece. No entanto, “decifrar” um garrancho não é um ato de heroísmo, mas uma aposta de alto risco com implicações éticas e legais que podem comprometer sua carreira.
Este artigo é um guia direto para você, profissional da saúde que representa a última e mais crucial barreira de segurança entre o paciente e um potencial erro de medicação.
O Que a Legislação Garante a Você?
Sua recusa em aviar uma receita ilegível não é apenas uma opção, é um direito e um dever amparado por um robusto arcabouço legal e normativo. Conhecê-lo é sua principal ferramenta de defesa.
- Lei Federal nº 5.991/1973: O texto é inequívoco. O artigo 35 determina que a receita só será aviada se estiver escrita de modo legível. Essa lei, em vigor há mais de 50 anos, é o seu primeiro escudo.
- Código de Ética Farmacêutica (Res. CFF nº 596/14): Esta é a sua carta de direitos profissionais. O artigo 11 é claro ao garantir a você o direito de:
- Decidir, justificadamente, sobre o aviamento ou não de qualquer prescrição (Inciso IX).
- Exigir dos profissionais de saúde o cumprimento da legislação sanitária, em especial quanto à legibilidade da prescrição (Inciso III).
- Interagir com o profissional prescritor para garantir a segurança e a eficácia da terapêutica (Inciso II).
- Resolução RDC nº 67/2007 da Anvisa: Esta norma autoriza expressamente o farmacêutico a avaliar a receita pelos critérios de legibilidade antes de aviá-la, podendo barrá-la pelos riscos que uma interpretação errônea pode causar.
O Protocolo de Segurança: O Que Fazer Diante da Dúvida
A orientação dos Conselhos de Farmácia e a prática segura ditam um caminho claro a ser seguido. Tentar adivinhar ou consultar grupos informais não é uma opção profissional.
- Contato Direto com o Prescritor: A primeira e mais profissional atitude é tentar contato telefônico ou por meio eletrônico com o médico ou dentista para esclarecer a prescrição. Documente essa tentativa.
- Recusa Justificada e Orientação ao Paciente: Na impossibilidade de contato, a dispensação deve ser recusada. Explique ao paciente, de forma calma e educativa, que a medida visa exclusivamente a sua segurança, conforme exigido por lei. Oriente-o a retornar ao consultório para obter uma nova prescrição legível.
- Denúncia Formal aos Conselhos: Caso a prática de receitas ilegíveis por um mesmo profissional seja recorrente ou haja recusa em corrigir a prescrição, a denúncia formal é uma medida necessária. Ela pode ser feita tanto ao Conselho Regional de Farmácia quanto ao Conselho Regional de Medicina (CRM), que é obrigado a investigar a conduta, pois fere o Código de Ética Médica.
A Responsabilidade Civil e Criminal: Um Risco Real
O erro na dispensação motivado por uma interpretação equivocada de uma receita ilegível pode trazer consequências devastadoras.
- Responsabilidade Solidária: Juridicamente, a responsabilidade pode ser compartilhada. O médico erra ao prescrever de forma ilegível, mas o farmacêutico e o estabelecimento assumem o risco ao tentar “adivinhar”.
- Indenizações por Danos Morais e Materiais: Tribunais de todo o país têm condenado farmácias a pagar indenizações por danos causados por erros na dispensação. A alegação de que a “culpa” foi da letra do médico não costuma ser aceita como excludente de responsabilidade, pois o farmacêutico tinha o dever de não aviar a receita.
- Ação de Regresso: É importante saber que, embora a farmácia seja condenada a indenizar o paciente, ela pode mover uma “ação de regresso” contra o farmacêutico responsável técnico para reaver os valores pagos, caso se comprove a falha profissional.
- Esfera Criminal: Em casos que resultem em lesão corporal grave ou morte, a responsabilidade pode transcender a esfera cível e se tornar um processo criminal por lesão corporal culposa ou homicídio culposo.
Fortaleça Sua Posição: A Tecnologia como Aliada
A prescrição eletrônica é a solução definitiva para o problema, eliminando a barreira da caligrafia e aumentando a segurança para todos. Incentive e apoie essa transição. Enquanto ela não é universal, seu papel como educador e guardião da saúde pública é fundamental.
Lembre-se: sua assinatura no carimbo de aviamento é a chancela final de que o processo foi seguro. Não a utilize se houver a menor sombra de dúvida. Valorize sua profissão, proteja seu paciente e resguarde sua carreira.
Assessoria Jurídica para Profissionais da Saúde
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